Na fila do pão
— Senhora, a moça do balcão te chamou.
— Eu ouvi. Paciência, meu filho. A idade vem com fila e reflexão.
— É que a senhora ficou ali parada…
— Estava decidindo se levo três pães ou a dignidade.
— Oi?
— Nada, meu filho, depois dos 60 você vai entender. Três pães, por favor.
— Mais branquinhos?
— De preferência. Esses da frente, da cor das canelas dele.
— Não entendi, senhora. Esses?
— Esses, minha filha. Eu tô pensando alto, reclamando alto, sei lá.
— Espero que o pão melhore seu dia.
— Que jeito, menina? Com o ex-marido no mesmo prédio?
— No mesmo andar?
— Deus me livre! Ele em cima e eu em paz. Só penduro a sacola de pão na porta e vou-me embora.
— E ele sabe que é a senhora compra?
— Claro que sabe. Aquele homem não consegue atravessar a rua pra comprar um salgado. Ele deve achar que eu tenho esperança.
— E tem?
— Tenho juízo. Ele esquece o pão desde 1982. Mas lembra de reclamar quando não levo, fala tanto na minha orelha que eu prefiro me livrar logo.
— Se eu fosse a senhora, não compraria mais. Aqui, três pães.
— Sempre me falam isso. Coloca na sacola dupla? Ele reclama que o pão chega “machucado”. Machucada sou eu.
— Todo dia a senhora leva?
— Não tô te dizendo que todo dia ele esquece? Que saída eu tenho? Ele Interfona. Com aquela voz de alma penada.
— Por que a senhora ainda faz isso?
— Pra ver se um dia ele engasga.
— Com essa raiva toda, uma hora ele engasga e vira alma penada mesmo.
— Tomara. Nesse dia eu devo ser canonizada. Já vai rezando pra santa aqui. Meu nome é Maria das Dores. Mas pode chamar de Dorinha, que dói menos.

Marianna Mafe é jornalista, sócia-diretora de uma agência de marketing e apaixonada pelas palavras. Entre uma campanha e outra, com humor e reflexão, se dedica a desvendar as histórias do cotidiano que estão ao nosso redor, mas nem sempre são percebidas.