Sob a luz do luar
Muitos de nossos colegas de Escola iniciaram namoros naquela fase da vida. Tínhamos, então, entre 14 e 18 anos. Os hormônios estavam absolutamente energizados.
Todos apresentávamos algum ‘predicado’ que atenderia aos requisitos para eventual parceria. Naturalmente, havia os mais cobiçados, meninos ou meninas, cujos ‘dotes’ atendiam ao modelo padrão estético; ou alguma habilidade específica, física ou intelectual. No entanto, naturalmente, havia os topplusmegasuperespeciais e aqueles, como eu, do fim da fila. Nenhuma tristeza ou complexo de inferioridade por isso, apenas a consciência que, a partir desse conhecimento, seria necessário usar estratégias para se tornar escolhido, pois, afinal, os primeiros tinham a prerrogativa da opção.
Importava conhecer os sucessos, estar bem-informado, dominar disciplinas complexas, inteirar-se de literatura e poesia, saber sorrir e dar atenção. E empregar essas táticas com alguma desenvoltura, ajudava a transformar adversidades em vantagens competitivas. Comigo, deixou de funcionar diversas vezes, mas eventualmente foi de especial valia.
Pude, já no terceiro e último ano, namorar, por algum tempo, linda moça, espirituosa, inteligente, sorriso maravilhoso. Mesmo com baixa visão, era das mais aplicadas no curso, tinha um dinamismo invejável. Entre as várias atividades extraclasse que desenvolvia, integrava um coral importante, atuando como soprano.
Foi com ela que falei mais abertamente sobre a minha deficiência, a sequela de pólio, que impediu o desenvolvimento muscular completo da perna esquerda e parcial da direita. Eram conversas importantes para que pudesse enxergar o problema de um ponto externo à minha própria vivência. Assim como eu necessitava do aparelho ortopédico para deambular, ele necessitava de óculos, grau acima de 4, para enxergar e parecia entender bem alguma rejeição ou os preconceitos que reduzem oportunidades de pessoas por condições não optadas.
Os ensaios aconteciam nas salas do Palácio das Artes, teatro referência na capital mineira, instalado no Parque Municipal, avenida Afonso Pena. Mesmo numa localização central da movimentada capital, é cercado de vegetação que lhe dá um ar pitoresco. As salas de ensaio ficam abaixo do nível do teatro, numa espécie de subsolo, acessível pela lateral do prédio. Esse acesso, por uma pequena ruela estreita, é ladeado por um promontório de terra com inúmeras árvores, entre o teatro e a avenida Carandaí.
Numa noite de outono, fui buscá-la após o ensaio por esse caminho. No céu sem nuvens, reinava prateada uma espetacular lua cheia. As folhas derrubadas pelo vento da tarde forravam o terreno com uma mescla de tons verdes, daquelas caídas há pouco, e marrons debulhadas nos dias anteriores. Por entre os poderosos troncos escurecidos pela penumbra, viam-se luzes dos prédios e postes da avenida além.
Ao sairmos, naquele local absolutamente romântico, ela considerou a possibilidade de virmos de lados opostos sobre aquele tapete de folhas para nos encontrarmos num abraço de cinema, coroado por um rodopio cheio de sorrisos.
Claro que sonhei junto, mas também avaliei que se tentássemos realizar, meu frágil equilíbrio nos faria rolar pela breve ladeira. E a cena romântica se transformaria em pastelão.
Melhor caminharmos apenas de mãos dadas encantados por aquele belo esplendor.
3 Comments
kkkkkkkkkkkkkkkk essa foi boa. Vocês ficaram entre Machado de Assis e Millôr Fernandes, mas sob as estrelas. kkkk
Mário, que texto maravilhoso! A forma como você narra essa fase da vida é ao mesmo tempo sensível, elegante e cheia de personalidade. Você conseguiu transformar lembranças pessoais em uma crônica que toca profundamente, com humor sutil, sinceridade e uma beleza poética rara. A cena final, com a lua cheia, as folhas caídas e o “abraço de cinema” que se transforma num gesto simples e encantador, é de uma delicadeza comovente. Que talento o seu para escrever com alma, meu amigo. Parabéns!
Apaixonada pelas suas publicações!