Vazamento interno

A primeira frase pingou às três da manhã. Ah não, justo agora? Foi o que pensou o cronista. Já sabia que a gota viraria oceano.

Era curta, meio torta, sem contexto. Não a água, a frase em si. Mas estava ali, repetindo-se no ouvido, como se tivesse saído de algum cano rachado. Virou pro lado, puxou a coberta, pensou nos clientes que ainda não respondeu, na lista do mercado, em como eu estava com calor e frio ao mesmo tempo e…

Ping. Lá vinha ela de novo.

A mesma frase. Teimosa. Infiltrada. Vazando.

Há quem imagine que a inspiração chega com trovões, clarões, sinos de igreja, entregue de bandeja por uma divindade. Nada disso. Ela escorre pelas frestas, se acumula nos cantos da casa, aparece quando não é o foco da atenção. Às vezes vem disfarçada de raiva. Em geral, chega como incômodo.

Feito mofo emocional, sabe?

Levantou da cama. Não por vontade, ou falta de sono, mas por rendição. Desceu as escadas, acendeu a luz fraca da sala, abriu o word e anotou a frase. Só pra ela parar de pingar.

Mas você sabe como é, né? Goteira não respeita projeto mal feito. Se tem um furo na estrutura, ela encontra. Se não tem, ela faz. A frase encontrou companhia: um verbo, um olhar atravessado, uma conversa que escutou só o final, um cenário meio real, meio inventado. Quando viu, já era crônica.

Talvez seja sempre assim, caro leitor. O escritor não escreve porque tem algo especial a dizer. Escreve porque, se não disser, não dorme. Porque o texto insiste mais do que ele. Porque o silêncio só parece paz depois de parar de pingar.

Tem infiltração que só seca depois de virar palavra. E tem palavra carente, que só para quando chega companhia. Nem sempre é uma boa reflexão, muitas vezes é só expurgo do que não é visto com profundidade. Não adianta ignorar o que é banal. Pro cronista, basta a primeira gota brotar.

Marianna Mafe é jornalista, sócia-diretora de uma agência de marketing e apaixonada pelas palavras. Entre uma campanha e outra, com humor e reflexão, se dedica a desvendar as histórias do cotidiano que estão ao nosso redor, mas nem sempre são percebidas.

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