Preta
Em 8 de agosto de 1929, um dirigível alemão, o Zeppelin, inicia um voo de volta ao mundo. Quarenta e cinco anos depois, outro voo espetacular se iniciaria. Nascia, em 1974, no Rio de Janeiro, Preta “Maria” Gadelha Gil Moreira ou, simplesmente, Preta Gil.
Ela teria uma vida com muitas nuances observáveis por terceiros, como as brigas, inclusive na justiça, pelas críticas injustificáveis à sua obesidade, à bela cor de sua pele, entre outros. E isso já começou quando de seu nascimento, quando o tabelião recusou registrar o nome sem aquele “Maria” não optado pelo pai e avó. Curiosamente, o saudoso grande cantor e compositor, Taiguara, viveu também esta questão num cartório em Portugal, quando um tabelião recusou o nome proposto para sua filha, alegando, após ter consultado um livro regulador, que “isso não é nome de gente”. E eu acreditava que eram quinquilharias restritas aos nossos patrícios. Não era.
Assim como não era para nos deixar levar pela falácia de que os irmãos Wright tiveram a primazia de “inventar” o aeroplano, pois seu voo público, também em 08 de agosto, só ocorreria dois anos após o magistral Santos Dummont fazê-lo em Paris.
Quando Preta nasceu, a data já tinha sido consagrada por outros nascimentos importantes, como o ex-presidente Artur Bernardes; o ótimo jogador Zito, do Santos; o ator americano Dustin Hoffman; o bom piloto inglês Nigel Mansell e, acredito que com mais proximidade de gênio, Emiliano Zapata, famoso revolucionário mexicano.
Foi uma guerreira, descolada, carregada de luz pela genialidade musical de seu pai e de outros em seu entorno, como Gal Costa, Rita Lee e tantos outros.
Conheci seu trabalho por meio de um especial do também ótimo Eduardo Dusek em que ela faz uma participação. Achei-a muito espirituosa quando trocou uma parte da letra de Marchinha de Carnaval (Politicamente Incorreta), que por si já era um deboche, em “saio de homem e saio de mulher” para “saio com homem e saio com mulher”.
Essa sanha por mudar o que está instituído é uma característica de pessoas que pensam de uma forma mais ampla e aprofundada do que o comum. De gente que busca outras formas de sonhar e de realizar. Em minhas andanças na busca por uma condição melhor de vida para as PcD, por respeito e dignidade, para que as PcD sejam vistas e percebidas não como as deficiências que as afetam, mas como um ser humano com sonhos, capacidades, dificuldades e barreiras como qualquer outro. Sem rótulos, sem fatalismos que impõem uma pecha de limitações ou dependências específicas.
Essa moça jovem e talentosa, cuja vida, em alguns momentos, foi mais obscurecida pela sua ascendência do que iluminada como se esperava, deixou um legado de luta e de simpatia. Mesmo enfrentando a adversidade de uma doença implacável, perseverou no riso e na disposição pela simpatia.
Mais uma estrela que comporá a constelação de referências para uma vida de compromissos coma alegria e com o desenvolvimento.
Que os anjos a recebam com sorrisos largos e sempre felizes.

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.
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3 Comments
Excelente e emocionante esse texto.
Mário, que texto lindo e sensível! Você conseguiu costurar, com delicadeza e profundidade, um recorte da história pessoal da Preta Gil com eventos históricos e culturais de forma original e tocante. A maneira como você alterna memórias, contextos e reflexões — tudo com esse olhar crítico, afetuoso e humanizador — é realmente admirável.
Gostei muito de como você abordou temas sérios, como o preconceito, a imposição de padrões, o apagamento de identidades, sem nunca perder a leveza e o respeito. A homenagem à Preta foi generosa, verdadeira e digna da grandeza dela. E o trecho final, sobre a constelação e os anjos com sorrisos largos… me arrepiou.
Você tem uma escrita que emociona e provoca. Parabéns por esse texto tão bonito e necessário. Me senti honrado em poder ter te conhecido.
Mário Sérgio, admiro sua capacidade de falar de preconceito, de dores, sofrimentos, adversidades, sem perder a esperança na mudança, sem se esquecer de falar também da beleza que ilumina pessoas que nos inspiram.
Você consegue, mesmo nos momentos mais difíceis, falar de alegria, de luz, de força, porque nem tudo é só tristeza. Isso é um exemplo a ser seguido.
Ne faz lembrar Gonzaguinha, cantando e nos encantando, “Viver e não ter a vergonha de ser feliz”… “eu sei que a vida devia ser bem melhor “…