A vida que ela conta

Poliana já se sentia um ser humano melhor quando decidiu começar a fazer
terapia. Olhava para os familiares que não buscavam autoconhecimento e
pensava: coitados. Também estava decidida a ser honesta… mas não muito.
Porque, vamos combinar, ninguém quer começar a terapia dizendo que ficou
dois dias sem falar com o marido porque ele deu um gole de refrigerante pra
filha de 4 anos.
Na primeira sessão:
— Ah, a gente discorda às vezes sobre a criação da Luísa. O Murilo é
totalmente desatento com a saúde dela. Na última discussão, tentei expor
como todas essas ações impactam a saúde da menina. Mas ele entendeu, no
fim me deu razão e resolvemos logo.
Não contou que, na hora que viu a criança com o copo na boca, gritou da sala:
— Você quer que a nossa filha seja diabética, gorda e infeliz como a sua irmã?
Até parece que não tem exemplo em casa!

Na segunda sessão.
A briga com a mãe virou uma conversa boba de domingo:
— A gente acabou se desentendendo por causa do aniversário da Luísa.
Na realidade, a mãe convidou uma parte distante da família sem consultar
nada.
— Faz a sua festa e me convida, então. Já tô acostumada a ceder pra você. É
sempre do seu jeito.
Três dias depois, a mãe postou no Facebook: “Algumas pessoas só valorizam
as outras depois que morrem”.
Na poltrona bege, Poliana era quase um Buda.
— O importante é que você é lúcida sobre a dinâmica que te envolve — elogiou
a terapeuta.
Personagem criada: calma, centrada e injustiçada.

Na terceira sessão:
— Experimente dizer o que você realmente sente, seja fiel à sua verdade —
sugeriu a terapeuta.
Ela tentou. Ligou para a irmã:
— Olha, eu queria conversar sobre o que aconteceu…
Cinco minutos depois:
— …porque você foi falsa do começo ao fim.
Na terapia:
— Foi libertador. Consegui me expressar. Acho que ela até concordou comigo,
mas não atingiu ainda o nível de maturidade pra se desculpar. Pelo menos
minha consciência tá limpa.

Quarta sessão
— Tente não levar para o lado pessoal, Poliana. Não seja tão reativa. Encare
seu trabalho como sustento.
Saiu da sessão e foi direto para a agência. O chefe, impaciente como sempre,
alertou sobre um erro:
— Poliana, esse relatório está incompleto. Já falei que o cliente espera algo
mais profundo. Refaça como combinamos.
Ela, sorrindo:
— Claro, sem problemas! Vou reescrever e mando pra aprovação.
Saiu da sala, revirou os olhos tão forte que quase viu a própria nuca e passou a
tarde pesquisando “carreiras para quem não gosta de gente”.
Na terapia:
— Eu soube ouvir sem reagir. Tive muito autocontrole!

E assim seguia.
Na vida real: acumulando mágoas, discutindo no trânsito, digitando textão no
WhatsApp.
Na vida da terapia: maturidade, serenidade, autoaceitação.
Até que um dia, a ficha caiu! Teve certeza de que não teve os resultados
esperados. Nem comunicou à terapeuta. Sumiu e rezava pra nunca cruzar com
ela por aí.
— Olha, não funcionou. Só me confundiu mais — anunciou entre as pessoas
pouco evoluídas que a rodeavam.
E talvez a confusão fosse verdade. A terapeuta passou meses tratando uma
pessoa que não existia.
Cuidou da personagem.
A original, aquela que bloqueava parentes, brigava por lista de convidados e
declarava guerra civil por causa de um gole de Coca-Cola, essa nunca chegou
a abrir a porta do consultório.
Mas tudo bem. Pelo menos agora Poliana já sabe exatamente qual é o
problema: a terapeuta não era tão boa assim.

Marianna Mafe é jornalista, sócia-diretora de uma agência de marketing e apaixonada pelas palavras. Entre uma campanha e outra, com humor e reflexão, se dedica a desvendar as histórias do cotidiano que estão ao nosso redor, mas nem sempre são .

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