Silêncio
A casa respira antes do amanhecer. Não é silêncio de biblioteca, é silêncio de ninar que ainda não terminou de desabrochar. O relógio joga sombras na parede, os peixinhos de vidro na janela parecem cochilar junto com o cantinho da cozinha, e o piso range como se sussurrasse: acorda, já.
No corredor, o chão parece uma linha de tênis de corrida: cada passo é um estalo curto, cada pausa, um suspiro contido. O bebê dorme grudado ao peito da mãe ou do pai, o rosto arredondado como um pêssego que ainda não decidiu se vai amadurecer hoje ou amanhã. Do quarto ao lado, o choro às vezes aparece de mansinho, como quem chega atrasado a uma reunião importante e tenta não quebrar o gelo: “Oi, estou aqui, sim, ainda sou eu, com quem eu sou hoje mesmo?”
As risadas começam antes que alguém conte a piada. Não precisa de piada para se rir: o barulho do carrinho sendo empurrado pela casa, a tampa que cai da panela e retorna com a mesma gravidade de um show de comédia, o “mamãe” que sai torto, mas carregado de orgulho, tudo isso forma um coral desajeitado que parece ensaiar há meses para a grande apresentação: o milagre do café que finalmente não é só água quente com cheiro de manhã.
O silêncio, ali, não é vazio. É espaço onde cabem dois olhos arregalados de sono, o fio de cabelo que escapa da travessura matinal, a blusa que ainda guarda o cheiro do leite. É o silêncio que diz: já vimos o que precisa ser visto, já ouvimos o que precisa ser ouvido, já sabemos o que precisa ser dito. E, ainda assim, repetimos: bom dia, mundo. Com olhos que piscam para pedacinhos de sonho que ainda não se firmaram, com risadas que surgem como pássaros tímidos, mas certos de que o dia vai chegar.
O som do choro, então, não é apenas ruído. É o metrônomo da casa que marca o compasso do cuidado: pausa para aconchegar, respiração que acalma, mão que oferece o que a barriga não entende ainda. E quando o choro cede lugar a um suspiro, segreda: tudo bem, você está aqui. A casa entende isso, mesmo que as palavras estejam perdidas entre o creme de leite vencido pela pressa e o brinquedo que insiste em ser o protagonista do cenário.
Risos cúmplices surgem no ponto exato em que o mundo parece querer acordar de pressa: “olha só quem está aqui”, diz o riso. E o riso responde com uma gargalhada curta, que não precisa de roteiro, apenas da certeza de que, juntos, ainda são dois, três, ou quantos forem os que cabem na mesa da cozinha.
No fim, o silêncio que parece simples é o mais falado de todos. Ele carrega promessas: de sonecas sincronizadas, de piadas mal entendidas, de acordes que tocam quando menos se espera. E, por mais corrido que o dia venha, ele fica ali, entre um “bom dia” descontínuo e outro, lembrando que, às vezes, a maior música da casa é o jeito como o silêncio aprende a dizer: bem-vindo.

*Artigo escrito por Julyana Almeida
Jornalista, mãe de 3 crianças lindas e disposta a compartilhar as loucuras e gostosuras da maternidade.
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