Fim da dor

A realidade nos bate tão fortemente à porta, que fica difícil não a abrir. Ou podese, ainda, optar por perder completamente a paz, porque o som dos golpes é ameaçador e incômodo. Dessa forma, qual o espaço ou tempo resta para a imaginação? Somos formados basicamente de sonhos. Produzimos e
construímos com foco naquilo que anda não temos e, assim, buscamos adequar o mundo à nossa vontade, aos nossos desejos de mais conforto, segurança, estabilidade. É bem verdade, no entanto, que cada conquista, cada propósito alcançado estipula uma nova meta pela qual devemos lutar, num processo que só termina, para cada um, quando o próprio indivíduo encerra sua jornada.

Em 1978, três compositores de alma inspirada, Paulinho Rezende, Mestre Alfredo e Totonho, criaram um samba magistral, que embalou festas e corações. “Tempestade de Amor” é uma daquelas músicas que nos remetem a um estado de alegria incontida, pois intui que se alcançou o Paraíso: “Tudo está bonito. É o fim da dor. Eu quero ser arrasado por uma tempestade de amor”. Num primeiro momento pode parecer encantador. Mas, uma vida sem desafios, sem obstáculos a serem superados, sem qualquer projeto de conquistas… Penso que, talvez, perdesse um pouco a graça. Sem propósito a vida perde a graça, o
estímulo para desenvolver, para criar, obter o diferente. Frases motivacionais como “Para se forjar o belo, há que se aquecer o metal, golpeá-lo e moldá-lo”; “Sem dor, sem ganho”; entre tantas outras, revelam a necessidade de contínua de romper até com o excesso de comodidade para alcançar níveis inimagináveis de satisfação e bem-estar. Noutras palavras, a inspiração, que torna mais brilhante o horizonte, mais verde o gramado além do próprio é que instiga a continuar e a buscar sempre mais.

As Pessoas com Deficiência, até por razões naturais, entendem com clareza o sentido que demonstra a famosa série de animação nipo-americana, “Caverna do Dragão” (1983-1985), criada por Kevin Paul Coates, Mark Evanier e Dennis Marks: Cada etapa concluída, cada desafio superado não garante o pleno
sucesso na vida. Sempre haverá outras provocações – no bom sentido – que exigirão respostas, aplicação de aprendizados e parcerias estratégicas na busca pelo sucesso. E existirão ainda novas barreira a serem superadas, caminhos a serem trilhados, obstáculos a serem vencidos. Sem as adversidades, com
nuances, formas e tamanhos distintos para cada indivíduo ou grupo, não há vida, pois se esvaíram as aspirações. Como viver sem o sonho de obter algum bem material, uma alegria para si ou para alguém importante, o amor?

Não se trata apenas de existir como um item qualquer do mundo mineral para o qual uma mudança é indiferente, qualquer futuro é irrelevante, nenhuma relação tem importância. Somos, a humanidade, quem esculpe a vida e por ela nos moldamos. Somos o amor que impulsiona o movimento, cria futuros, quebra paradigmas e altera os cenários. Experimentamos o sentido da vida pela certeza de sua fragilidade e finitude. Esta é a enorme plenitude que nos estimula a acreditar que tudo está bonito.

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.

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