O Direito Encapsulado na Mente de um Amanuense: Como a Burocracia Pensa e Age
O direito é algo que, para muita gente, parece viver apenas nos livros e nos tribunais. Mas, na verdade, ele está presente em cada passo da vida cotidiana e, principalmente, nos corredores da administração pública. Quando você vai a um órgão público para resolver um problema simples, como pedir uma certidão ou protocolar um documento, quem dá andamento ao seu pedido não é um juiz nem um advogado, mas um servidor que faz a máquina funcionar: o amanuense. Esse nome pode soar estranho, mas significa, basicamente, o funcionário que cuida dos papéis, dos registros e dos trâmites. Ele é quem movimenta os processos, organiza documentos e escreve os despachos que fazem tudo andar. E é justamente na mente desse servidor que nasce um fenômeno curioso: o direito encapsulado.
Imagine uma cápsula que guarda algo dentro dela. Quando dizemos que o direito está encapsulado na mente do amanuense, queremos dizer que ele não carrega toda a complexidade da Constituição ou das teorias jurídicas. Ele guarda apenas o que precisa para fazer sua função: regras práticas, checklists e procedimentos. É como se tivesse um manual mental com passos prontos: se faltar documento, devolve; se prazo acabou, certifica; se está tudo certo, encaminha. Essas regras ajudam a dar velocidade e organização ao trabalho, mas também podem criar problemas quando se transformam em formalismo exagerado. Às vezes, o servidor exige algo que a lei nem pede, só porque “sempre foi assim”. Outras vezes, deixa de aplicar um princípio importante porque não está no checklist.
Por que isso acontece? A vida na burocracia é corrida. Há prazos, metas e pilhas de processos. Para lidar com isso, o cérebro busca atalhos, o que os psicólogos chamam de heurísticas. São regras simples que economizam tempo: se parecer incompleto, devolve; se não tem carimbo, não aceita. Esses atalhos funcionam bem na maioria das vezes, mas podem gerar injustiça quando aplicados sem pensar no objetivo da lei. O amanuense, pressionado por volume e tempo, tende a seguir o caminho mais seguro: aplicar a regra como está escrita, sem questionar se ela faz sentido naquele caso concreto. É uma postura positivista, que valoriza a letra da lei e negligencia os princípios que dão vida ao ordenamento jurídico.
Aqui entra uma questão fundamental: legalidade versus efetividade. O servidor costuma seguir o princípio da legalidade, que diz que a Administração só pode fazer o que a lei manda. Isso é correto, mas não é suficiente. A Constituição traz outro princípio muito importante: o da efetividade. Ele impõe que não basta cumprir a lei no papel; é preciso garantir que os direitos previstos nela sejam realizados na prática. Se a legalidade for usada para criar barreiras desnecessárias, ela perde o sentido. Imagine uma mãe que precisa de um benefício para comprar remédio para o filho. A lei garante isso, mas o servidor exige um documento irrelevante só porque está no manual. Resultado: a criança fica sem remédio. Nesse caso, a efetividade da Constituição deve se sobrepor ao formalismo. A regra existe para servir à vida, não para atrapalhar.
O problema é que, na mente do amanuense, a Constituição é uma ideia distante. O que está perto é o sistema eletrônico, o manual interno, a ordem da chefia. Ele aprende por repetição, por histórias de erro que não pode se repetir, por casos exemplares que viram roteiro. Essa cultura cria uma hermenêutica burocrática: uma forma própria de interpretar a norma, filtrada por rotinas e linguagem administrativa. Palavras como “exigir”, “certificar”, “devolver”, “juntar” viram comandos automáticos. Cada ato é um ato de fala com efeito jurídico. O significado dessas palavras não está no dicionário, mas no uso que a organização lhes dá. É um jogo de linguagem, como diria Wittgenstein, só que aplicado à burocracia.
Essa hermenêutica burocrática tem vantagens: dá previsibilidade, evita improvisos, garante que todos sigam um padrão. Mas também tem riscos: pode engessar a Administração, criar exigências sem base legal, gerar retrabalho e frustração. Quando a rotina se sobrepõe à finalidade, o direito perde sua essência. A lei não foi feita para ser um obstáculo, mas para viabilizar direitos. Por isso, é preciso pensar em soluções que aproximem a prática do texto e do espírito da norma.
Como melhorar? Primeiro, com linguagem clara nas leis e nos manuais, para evitar interpretações confusas. Segundo, com treinamento prático para servidores, mostrando que princípios como a máxima efetividade da Constituição, a razoabilidade e proporcionalidade são tão importantes quanto a letra da lei. Terceiro, com sistemas simples que orientem o passo a passo sem criar exigências inúteis. E, por fim, com feedback constante: quando um erro acontece, aprender com ele e ajustar a rotina. A burocracia não precisa ser um labirinto; pode ser um caminho organizado e justo.
Por que isso importa para você? Porque cada vez que você enfrenta uma fila ou espera por um documento, está lidando com essa lógica. Entender como ela funciona ajuda a cobrar melhorias e a exigir seus direitos. O servidor não é seu inimigo; ele também está preso a regras e pressões. Mas é papel do Estado garantir que essas regras não virem obstáculos para a cidadania. O direito não vive só nos tribunais. Ele está presente na mesa do amanuense, nos carimbos e nos sistemas eletrônicos. Quando essa aplicação se fecha em formalismos, perde sua essência. Precisamos de uma administração que pense no fim, não só no meio: entregar direitos, não apenas cumprir ritos.
Em resumo, o direito encapsulado na mente do amanuense é um fenômeno real e poderoso. Ele mostra que a efetividade da Constituição depende não apenas de boas leis, mas de boas práticas. Depende de servidores que compreendam que a legalidade é um meio, não um fim. Depende de uma cultura que valorize princípios, que reconheça que a norma existe para servir à vida. Quando isso acontecer, teremos uma burocracia menos opaca, mais humana e mais eficiente. E você, cidadão, sentirá a diferença não nos livros, mas na fila do protocolo, no balcão de atendimento, na resposta que chega sem demora. Porque, no fim das contas, é ali que o direito se realiza — ou se perde
P.B.Lemos Filho Teólogo formado pela Faculdade Teológica Batista de Brasília, Advogado formado pelo CEUB, pós graduação em Processo Civil. Foi Analista do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Oficial de Justiça do TRT 10a Região e atualmente é Procurador Legislativo da Câmara Legislativa do Distrito Federal. É autor do livro OS REIS QUE VIRÃO publicado pelo clube de autores
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