Entre o Vitral e o Fragmento: a arte de buscar por sentido
A arte sempre foi um espelho — às vezes límpido, às vezes quebrado — daquilo que acreditamos sobre nós mesmos. E quando olhamos para o contraste entre a estética cristã e a estética pós‑moderna, o que vemos não é apenas uma disputa de estilos, mas uma batalha silenciosa de visões de mundo. De um lado, a velha convicção de que existe um centro, um eixo, uma luz acima da luz. Do outro, a vertigem encantadora (e às vezes caótica) de um tempo que celebra a fragmentação como liberdade e a desconstrução como gesto criativo por excelência.
A estética cristã nasceu desse desejo quase físico de tocar o intocável. Catedrais que se erguem como ossos de pedra empurrando o céu; pinturas que não querem apenas retratar, mas revelar; músicas que ecoam como se o ar fosse um sacrário; movimentos de dança que entendem o corpo como instrumento de devoção. Tudo vibra com uma espécie de ordem interna, como se cada cor, cada gesto, cada nota estivesse tentando contar uma verdade que ultrapassa o artista. Há uma confiança bonita — quase ingênua para os padrões atuais — de que a beleza pode curar, pode orientar, pode lembrar ao humano que ele é, de algum modo misterioso, feito à imagem de algo maior.
Mas a pós‑modernidade chegou como um sopro súbito que apaga velas. Não por maldade — mas por impaciência. Por cansaço das velhas certezas. De repente, a arte não precisava mais apontar para cima; bastava apontar para o lado, para dentro, para o nada. A música abraçou o ruído, o corte abrupto, a colagem. A pintura abandonou a figura para celebrar o gesto. A dança desligou o corpo de qualquer narrativa e deixou que ele existisse em sua pura espontaneidade. A arquitetura, antes vertical e teológica, assumiu formas tortas, irônicas, quase zombeteiras, como se cada prédio quisesse confessar: “não existe centro nenhum — e está tudo bem”.
Mesmo assim, é impossível negar: as obras de arte mais universalmente celebradas, aquelas que arrancam suspiros de gente de todas as culturas, nasceram, quase sempre, desse imaginário cristão. A Capela Sistina não existe por acaso. As cantatas de Bach não brotaram do vácuo. A dança litúrgica, tão simples e tão humana, sobrevive há séculos porque entende o corpo como narrativa de fé. E quantos templos — góticos, românicos, barrocos — continuam a fazer turistas desacostumados com o silêncio prenderem a respiração sem saber por quê? Talvez porque a beleza, quando acredita em algo maior que ela mesma, ganha uma força que não se explica; só se sente.
Não se trata de dizer que a estética pós‑moderna não tem valor — ela tem, e muito. Sua coragem de quebrar padrões abriu janelas importantes. Sua crítica ao absoluto revelou feridas que precisavam ser vistas. Seu experimentalismo libertou o artista de uma série de amarras. Mas a pós‑modernidade, tão apaixonada pelo fragmento, esqueceu algo que a estética cristã sempre soube: que o ser humano também anseia por inteiro, por sentido, por luz.
Talvez por isso, mesmo hoje, quando caminhamos por uma nave gótica iluminada por vitrais, quando ouvimos um coral sussurrando harmonias impossíveis ou quando nos vemos diante de um Caravaggio que parece pulsar, sentimos um choque silencioso — como se alguém puxasse nosso coração pela gola e dissesse: “olhe para cima”. A estética cristã não sobrevive apenas como memória; ela sobrevive porque continua oferecendo ao mundo uma arte que não teme o sublime.
E no fim das contas, talvez seja essa a tensão mais bonita entre esses dois mundos estéticos: enquanto a pós‑modernidade nos lembra que somos fragmento, a estética cristã insiste que somos busca. E a arte — essa teimosa guardiã dos mistérios humanos — seguirá dançando entre essas duas forças, ora erguendo catedrais, ora rabiscando ruídos, ora pintando o invisível, ora celebrando o caos. Porque, seja ao som de um órgão barroco ou de uma batida eletrônica desconstruída, o que a arte quer, no fundo, é a mesma coisa: que a gente continue procurando sentido. Mesmo quando finge que ele não existe.
P.B.Lemos Filho Teólogo formado pela Faculdade Teológica Batista de Brasília, Advogado formado pelo CEUB, pós graduação em Processo Civil. Foi Analista do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Oficial de Justiça do TRT 10a Região e atualmente é Procurador Legislativo da Câmara Legislativa do Distrito Federal. É autor do livro OS REIS QUE VIRÃO publicado pelo clube de autores
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