Guerra fria no 1002

Eles não brigavam.

Quer dizer, brigavam sim, mas em silêncio. A ausência de som era a arma preferida do casal. Ele acreditava que calar era sinal de maturidade; ela tinha certeza de que era estratégia de tortura psicológica. O apartamento 1002 mais parecia a recepção de um hospital.

De um lado, ele abria a geladeira e fazia barulho com os potes, só pra ver se ela se manifestava. Do outro, ela passava por ele no corredor como quem desvia de um móvel pesado, sem o menor esforço de contato visual. Nem bom dia, nem boa noite, apenas aquela coreografia do desprezo.

A casa inteira entrava no clima. Até o wi-fi parecia mais lento. O cachorro ficava indeciso sobre em qual lado do sofá se deitar, temendo ser interpretado como espião. A televisão, no volume baixo, servia de trilha sonora constrangedora para a guerra fria: risadas de sitcom abafadas pela falta de diálogo.

Na hora de comer algo, era ainda mais constrangedor. Ele exagerava no barulho dos talheres, como quem dizia: estou mastigando, caso você queira puxar assunto. Ela, em resposta, se dedicava a olhar fixamente para o prato.

Quando saíam para jantar com amigos, a diplomacia era forçada: sorrisos protocolares, frases curtas, o típico clima de “foto oficial entre líderes mundiais”. O casal parecia estar sempre num jantar de cúpula: ninguém queria levantar a pauta delicada, mas todos percebiam que o ambiente não estava nada bem.

Nos bastidores, cada detalhe virava munição. A toalha molhada na cama, o volume da TV, a forma de dobrar a roupa. Nada escapava. Ela anotava mentalmente os deslizes, ele se armava de justificativas prontas. Não eram discussões, eram relatórios confidenciais.

E o mais curioso é que, por dentro, os dois estavam loucos para romper a barreira. Ele queria comentar que o time finalmente ganhou depois de cinco rodadas de sofrimento. Ela queria mostrar um vídeo engraçado de uma criança discutindo com a mãe sobre chocolate. Mas o orgulho é um bicho que se alimenta de vaidade, e nenhum dos dois queria ser o primeiro a dar o braço a torcer.

Até que, numa dessas guerras silenciosas que já duravam dois dias, a carta de rendição veio na forma mais banal:

— Quer que eu faça pipoca? — perguntou ele, quase num sussurro.

Ela demorou três segundos calculados, manteve a postura diplomática e respondeu:

— Pode. Mas sem exagerar na manteiga, que depois sou eu quem lava a louça.

Tratado assinado. Paz aparente.

Porque eles já sabiam: a próxima batalha estava marcada para quando alguém esquecesse a luz da garagem acesa.

Marianna Mafe é jornalista, sócia-diretora de uma agência de marketing e apaixonada pelas palavras. Entre uma campanha e outra, com humor e reflexão, se dedica a desvendar as histórias do cotidiano que estão ao nosso redor, mas nem sempre são .

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