Mitos

No bairro em que vivi meus primeiros anos de infância marcada pela deficiência, uma gentil senhora aconselhava:

No tempo de frio, use calças compridas. No calor, curtas, para pegar sol.

A intenção era sublime e produzia conforto, pois essas roupas seriam indicadas a quaisquer crianças, independentemente de estar, como eu, submetido àquela patologia. Saber que a sugestão seria ineficaz para reverter o quadro, não reduz em nada o amor envolvido na intenção. É verdade também que a escolha de minhas roupas cabia à minha saudosa mãe. Eu apenas as vestia. Mas aquela doce senhora acreditava que, seguindo suas orientações, meu quadro (talvez!) se revertesse.

Na avaliação de outras tantas pessoas, diversas atividades deveriam ser evitadas, em razão da “paralisia infantil”. Seria perigoso. Não seria possível fazer. Não daria conta.

Por excepcional sorte, na condição de oitavo entre doze filhos, o nível de atenção dispensado a mim, não impediu o desenvolvimento de habilidades inesperadas para a minha condição física. E isso foi libertador.

De formas distintas, mas com inúmeros pontos de contato, o “Mito da Caverna”, de Platão; a experiência de condicionamento de símios; o equino amarrado a uma levíssima cadeira plástica que nunca o impediria de evadir-se; mostram as limitações impostas por mitos, cultura enviesada, ignorância. O conhecimento e a experiência são instrumentos de alforria.

A capacidade de observação e de aprendizado alertam sobre aquilo que se quer ou que se pede: talvez seja arriscado, se atendido. Por exemplo, alguém que rogue por um temporal que arraste a casa do desafeto vizinho, deveria se lembrar que também é ribeirinho.

Uma campanha sindical do final no século passado, apresentava um senhor que demonstrava desinteresse pela perda do emprego de outros inferindo que não trabalhavam no mesmo ramo. Assim não se levantou contra o que parecia injustiça. Quando ele mesmo perdeu seu emprego, os outros o trataram de forma semelhante. A verdade que se quis demonstrar na campanha era que todos, não importa a profissão ou área de atuação, eram trabalhadores.

A história está plena de situações em que uma simples observação dos fatos alteraria por completo determinados desfechos dolorosos. Talvez seja o que se está vivendo no Brasil. E é importante lembrar que toda e qualquer ditadura causa um terrível mal ao povo que a tolera. Também, que tais regimes nascem com populismo, a criação de um inimigo imaginário e a divisão entre nós e eles, como no caso dos trabalhadores citados ou dos judeus durante o nazismo alemão.

A mesma perversão, por arrogância ou prepotência, que hoje aplica injustiça ao meu adversário, em razão de opinião diversa, ao perceber que não há freios nem contrapesos, breve, certamente, se voltará contra mim. Exemplos clássicos recentes como Cuba, Venezuela, Nicarágua, gritam que as ditaduras empobrecem o país e o povo.

Assim como as pessoas de minha infância acreditavam ingenuamente que restrições a mim seriam salutares, sem saber que isso implicava em redução de meu desenvolvimento, hoje, mesmo pessoas boas, acreditam que a injustiça que atinge a outros nunca os afetará.

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.

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1 Comment

  • Mário, que texto impressionante.
    Você conseguiu costurar com sensibilidade memórias pessoais, reflexões filosóficas e críticas sociais profundas, sem jamais perder o tom humano e acessível. A forma como você narra sua infância com delicadeza e lucidez, transformando uma experiência de limitação física em aprendizado e libertação, emociona de verdade.

    A conexão que você faz com o mito da caverna, os condicionamentos e as metáforas como a do cavalo preso a uma cadeira plástica, são absolutamente geniais — despertam um alerta poderoso sobre o quanto somos, muitas vezes, prisioneiros de ideias impostas e crenças limitantes.

    Além disso, sua crítica ao populismo e à cegueira coletiva diante das injustiças é contundente, mas feita com uma elegância rara. Você aponta para o perigo das ditaduras com a maturidade de quem sabe que o extremismo, ainda que dirigido ao outro, cedo ou tarde volta-se contra todos.

    É um texto que inspira, provoca e nos convida à reflexão — sobre empatia, liberdade e responsabilidade coletiva.

    Parabéns mesmo, meu amigo. Escreva mais. O que você diz merece ser lido.

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