Triangulares
No segundo ano de Escola Técnica, BH/1978, já estávamos “enturmados”, amizades consolidadas e apreendido o valor das boas relações.
No intervalo de almoço, sentados num banco de alvenaria, desses comuns de jardim, sob uma grande árvore para o que podíamos: um misto quente, no capricho. Um dos colegas, Jair, hoje saudosa lembrança, propôs que cotizássemos uma garrafinha gelada do refrigerante Mirinda. Queria descrever o sabor daquele refrigerante de laranja, que já não encontro em bares nem nas gôndolas dos supermercados, mas seria maldade porque causaria tristeza aos mais jovens por saberem o quanto era delicioso aquele néctar e não poderem desfrutá-lo.
Proposta aceita por todos. O dinheiro de que dispunha deveria ser para o ônibus e a mínima margem de sobra, suficiente apenas para a contribuição solidária, causava calafrios.
As PcD, com sequelas de pólio desde muito cedo, inclusive porque o mal afeta mais frequentemente crianças, no mais das vezes, apresentam uma compleição física sui generis: ombros e braços muito desenvolvidos, hipertrofiados, e pernas atrofiadas, frágeis e instáveis. Com a aparência, grosso modo, de um triângulo isósceles, com um dos ângulos apontado para o chão. Como o simpático personagem das histórias em quadrinhos, Johnny Bravo, de Hanna-Barbera, criado por Van Partible, exibido no Brasil desde 1997. Trata-se de um carateca hilário, também de formato, no desenho, que lembra um triângulo. Isso fazia com que quem nos visse de relance, só nos identificassem como PcD, quando não estivéssemos sentados. Essa condição especial já me livrou de alguns embates físicos dos quais, certamente, guardaria péssimas recordações. E essas experiências me mostraram meus limites.
Naquele dia experimentei uma situação inusitada. Enquanto o colega Jair ia à cantina comprar o gostoso líquido, apanhei uma tampinha metálica, também de Mirinda, para fazer uma brincadeira com ele, quando retornasse. Dobrei-a e retornei à condição original algumas vezes até que a parte metálica fendesse.
As metades ficaram presas pela flácida película emborrachada interna. Mantive-a oculta na mão enquanto aguardávamos sua volta com o refrigerante.
Jair era franzino, tímido, avesso a contendas. Um aluno veterano, destemperado e brigador resolveu insultá-lo, ameaçá-lo. Coisas de adolescente buscando autoafirmação entre seus pares. Como diria meu saudoso pai: “bobagem de menino”.
Com a pressa que a situação exigia, Jair chegou. Estávamos em três. Ele, eu e Isidoro que se levantou, mais pronto para fugir do que para enfrentar o veterano abusado que seguira o Jair.
Por sorte, me mantive sentado e recebi a garrafa fechada. Coloquei-lhe o bico na beira do banco e, com pequeno baque, a tampinha se soltou, sem cair. Segurei-a na mão direita e com a esquerda devolvi a garrafa ao Isidoro. Cheio de destreza, troquei as tampinhas e, encarando o grandalhão, rasguei a proteção interna com cenho franzido, intimidador, e ar de quem rasgava a tampinha inteira. Joguei as metades no chão, à sua frente. Me sentindo o próprio Sanção. O outro deve ter imaginado o nível de força e coragem. Então decidiu procurar outro a quem incomodar.

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.
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