Dá pra acreditar?

Quando a dor é do outro, nem sempre a gente consegue, ou se interessa, em avaliar sua extensão.
Semestralmente, viajávamos de Monlevade a BH, para trocar o aparelho ortopédico das pernas e a cinta pélvica. Frequentemente ouvíamos do técnico que os produzia:

  • Não se preocupem, com o tempo ele vai laceando, igual a sapato novo.

Detalhe: as peças eram de ferro. A informação era inverídica, portanto, inútil. Haveria sim, com certeza, dor, ferimentos e calos.

Essa capacidade demagógica de dizer coisas que, se não ditas, não fariam falta alguma, foi explicitada, para nosso deleite, pelo personagem Odorico Paraguaçu. Esse fictício político corrupto, do interior baiano, na novela de Dias Gomes, O Bem-Amado (1973), prometia o impossível, iludia com falas dúbias e manipuladoras, para seduzir o eleitorado. Era…

Certa vez, com um amigo em um supermercado, estávamos na quarta posição numa das menores filas de caixa. À nossa frente um jovem senhor cujo carrinho estava pela metade e, adiante dele, um quase vazio de uma senhora. Quando o primeiro quase encerrava, ela chamou alguém que estava noutra fila, com uma compra enorme. O jovem senhor tentou argumentar que não estava certo, que ele teria vindo para aquela fila porque imaginou ser mais rápido. E o bate-boca se formou. Num certo momento, o jovem senhor virou-se para nós, atrás dele, esperando apoio. O meu amigo, tranquilo, mas convicto, informou que, se não parassem a discussão, ele sairia para outra fila…

E daí??? Que ameaça ridícula foi aquela?? Que diferença faria para os brigões se nós, que estávamos atrás, saíssemos da fila?

Frases assim às vezes ilustram uma situação, mas não dizem nada. Como numa cena em que o Primo Rico, também personagem do grande Paulo Gracindo, pergunta à esposa – que teria viajado com o Personal Trainning -, quando ela voltaria e ela responde que seria quando quisesse. Ele, severo, ameaça:

Está bem!! Mas nem um dia a mais!…

Também o Reginaldo Bessa, preferiu deixar vaga uma ameaça musical, instituindo que ela ocorreria “Qualquer dia desses”, nas emotivas interpretações de Alcione e de Rosemary.

Mas informo aos leitores, “assim que puder” voltarei ao tema porque o chefe nos prometeu um aumento salarial “o mais breve possível”.

Dá pra acreditar?

Mário Sérgio

Mário Sérgio Rodrigues Ananias é Escritor, Palestrante, Gestor Público e ativista da causa PcD. Autor do livro Sobre Viver com Pólio.

Whatsapp: (61) 99286-6236

Instagram: Mario S R Ananias (@mariosrananias) • Fotos e vídeos do Instagram

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Site: Mário S. R. Ananias – Sobre Viver com Pólio (mariosrananias.com.br)

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6 Comments

  • gostei do tema, muitas vezes, ficar calado é a melhor opção.
    parabéns pelo artigo

  • Coisa boa é voltar a ler um texto leve e agradável. Isso está cada vez mais raro. Parabéns ao autor.

  • O texto que você compartilhou levanta uma questão curiosa sobre como algumas promessas ou ameaças, apesar de parecerem sérias, não têm substância real por trás. Elas podem ser frases vazias, enganosas ou simplesmente engraçadas quando se olha mais de perto.

    Imagine um técnico ortopédico dizendo que um aparelho de ferro “vai laceando, igual a sapato novo”. Só se ele estava esperando um milagre da metalurgia! Quer dizer, com certeza a dor iria lacear seu humor antes do ferro amolecer. É como se alguém dissesse que uma pedra vai ficando mais fofa depois de um tempo. Inútil, mas cheio de otimismo!

    A situação no supermercado também é um clássico. O jovem senhor na fila tentando protestar contra a injustiça do “esquema do carrinho vazio” enquanto o amigo sugere que se a discussão continuar, eles vão para outra fila. Grande ameaça! Tipo, “parem de brigar ou nós vamos para… outro lugar mais demorado!” É como se ameaçar um peixe dizendo que você vai nadar para outra parte do aquário. Para os brigões, faz diferença nenhuma!

    E quando falamos de promessas vagas, nada melhor do que políticos fictícios para exemplificar. Odorico Paraguaçu, o mestre da fala bonita sem conteúdo, prometendo um cemitério novo para uma cidade onde ninguém morre? Impressionante, mas sem fundamento! A famosa “ameaça sem efeito” pode ser engraçada quando percebemos o quão absurda ela é.

    Até nas relações interpessoais vemos isso. O Primo Rico tentando ser duro com a esposa, dizendo que ela tem que voltar de viagem “mas nem um dia a mais!”. Ah, pronto, agora sim, uma ameaça para acabar com as viagens… ou não. É quase como se alguém dissesse “vou contar até três”, mas depois nunca chega a dois.

    É o tipo de ameaça ou promessa que soa bem na cabeça de quem diz, mas para quem ouve, é uma declaração sem peso. Assim como o chefe que promete um aumento “o mais breve possível”. Pode ser que “o mais breve possível” seja só um código para “quando os unicórnios começarem a entregar pizza”.

    Então, sempre que alguém te disser algo assim, lembre-se: é mais provável que o metal laceie do que as palavras deles tenham substância. Mas é tudo parte do grande teatro da vida, não é?
    A gente só precisa rir e seguir em frente.
    Afinal, quem nunca ouviu uma promessa meio duvidosa ou uma ameaça vazia, que atire a primeira pedra… mas cuidado, a pedra não vai amaciar com o tempo!

  • Falou pouco, mas disse muito. Parabéns por dominar a arte das palavras e trazer relevância pra essa causa tão importante.

  • De fato com essas “ameaças” e falas que não são bem vindas, percebemos o quanto são desnecessárias. Primeiro, que com sua tal “ameaça”, muitos se acham superiores, como se tivessem algum poder sobre elas. Já, outros casos, se trata de algumas falas que quem diz, acredita estar dando um “conselho”, como no exemplo do aparelho ortopédico e da cinta pélvica, que pela lógica de serem feitos com material de ferro, obviamente não teria como se ajustar ou “lacear igual sapato novo”, como o próprio técnico diz.
    Esse texto nos faz refletir de certas falas que definitivamente não são necessárias, e que se não há boa intenção de ajudar o próximo, não há o que ser dito.

  • E, vamos caminhando através de nossas convicções, constatando as injustiças sofridas nesse nosso vasto mundo.

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